sexta-feira, 12 de abril de 2024

Se ele não sabe porque é que explicas? *



A propósito da uma história de Manuela Castro Neves

Não é possível explicar a quem não quer saber de explicações. E só não quer saber de explicações, quem se sente a léguas do assunto da explicação.

Explicar é fazer com que o outro entenda o que temos a dizer. Mas para que isto aconteça precisamos saber o que ele sabe do que queremos que saiba. E só chegamos a esse saber pela conversa. Uma conversa só possível, tantas vezes, se tivermos a capacidade de ler os sinais que ele nos passa: a perplexidade que vemos no seu olhar e nos interroga,  que pode ser o início do diálogo que leva à explicação; ou aquele desafio que nos diz que não está nem aí e nos "convida" a seguir outro caminho, algo idêntico ao relatado em “Matemática, só matemática", uma das trinta e quatro pequeníssimas histórias que a Manuela nos conta no seu livro "Caderno A4", e que reproduzimos abaixo [as restantes só podem ser lidas no livro], num enredo que nos convida a reflectir sobre o caminho das explicações que damos: negociação ou confronto.

A Manuela diz que não dá explicações, mas explica! Explica no diálogo que o outro aceita ter com ela. Só não traz a explicação à cabeça.

Daniel Lousada


Esta é uma história que começa mesmo muito mal e acaba bem. Por isso, e porque ela me levou à descoberta de um novo caminho, gosto de a contar. 

O Tomás tinha sete anos, frequentava o segundo ano de es­cola­ridade e, de acordo com a professora e com a psicóloga que o obser­vou, precisava de um apoio acrescido fora do horário le­tivo. Era ótimo aluno a matemática – diziam mesmo que o me­lhor da turma, – mas havia nele um bloqueio enorme em relação à leitura e à es­crita. Foi por isso que a mãe mo trouxe em certo fim de tarde.

Antes que ela tocasse à campainha, já eu ouvia os gritos do me­nino na rua: “Não! Não! Não!” Não queria vir. Não lhe inte­res­sava aprender a ler. Só lhe interessava a matemática. E já à porta, batia deses­peradamente com a cabeça nas paredes. Não ia fi­car. A mãe, atrapalhadíssima, gritava também. Que ele ficava, sim, que era ela quem mandava. E eu, ali, sem saber como inter­vir e previamente assustada com o que me esperava. A certa altura, disse à se­nhora que seria melhor levá-lo para casa, con­versar com ele e trazê-lo nou­tro dia, quando ele estivesse con­vencido de que o apoio lhe seria útil. Ela respon­deu que, se o levasse, lhe iria dar uma tareia, pois estava exausta e furiosa, farta de tanta birra. E que me pedia enca­recidamente o grande favor de ficar com o menino durante um bo­cado, enquanto ela ia dar uma volta para se acalmar. Por favor, por favor. Não tive co­ragem de recusar, roguei a todos os san­tos e peda­gogos que me ajudassem. E os santos, ouvindo a minha prece, se­gredaram-me ao ouvido: Ma­temática, matemática! 

Então, com o menino virado para a parede, disse-lhe: “Vá! Vamos trabalhar matemática!”

Limpou as lágrimas, deixou escapar um último soluço, ace­nou afirmativamente com a cabeça e su­biu a escada comigo. Sen­támo-nos, pus na sua frente um caderno quadriculado e, sem perder tempo, perguntei-lhe: “Então, da matemática, o que é que vamos fazer agora? ”Resposta imediata: “Contar até dez mil.”

Dez mil? Mas não vais conseguir chegar lá hoje.” 

Com o à-vontade de quem percebe do assunto, respondeu: “Pois não, mas não faz mal. Continu­amos nos outros dias.” 

Pronto. Estava garantido que iria voltar sem birra. Tinha um obje­tivo nobre: o de chegar a dez mil.

Respirei fundo, enquanto ele começou a grande velocidade: 1, 2, 3, 4, 5... Quando ia perto do 100, sugeri que contasse de 2 em 2.

“Claro! Chego mais depressa.” E continuou, cheio de energia. Já ia em 519 quando a cam­pa­inha soou. Era a mãe. Acabara a volta calmamente e vinha buscá-lo. Expli­quei ao Tomás que, antes de sair, tinha de registar no ca­derno a frase: “ficámos em 519”. Respondeu que não era preciso. Ele fixava os nú­meros muito bem e, da próxima vez, re­começaria no 520. Insisti. Que esta contagem ia ter muitas eta­pas e nós ía­mos gostar de as recordar mais tarde. Por isso, era bom que fi­cassem registadas, que a frase que eu estava a propor era muito fácil.

“Para mim não!”, afirmou.

Não era?! Então um menino tão inteligente, capaz de contar até dez mil, não conseguia escrever uma coisa tão simples?! En­cheu-se de brio: “Fi... é um f e um ?”

“Sim, claro. E ?”

“Um c e um a.”

Escreveu “fica” e acrescentou: mos é que eu não sei mesmo.”

“Escreve mo. Eu completo.” Escreveu mu. Eu juntei o s e a palavra em. Todo contente, ele escreveu à frente: 519. Tínhamos assim o primeiro registo: “ficamus em 519”. De­pois, foi com um grande sorriso nos lábios que chegou ao pé da mãe. A se­nhora, aliviada, não cessava de me agradecer.

“É à matemática que deve agradecer, não a mim.”

Grande final de tarde! A guerra não estava provavelmente ga­nha, mas esta por mim tão temida primeira batalha, sim. Respirei, também eu, aliviada.

Quando o Tomás voltou, três dias depois, ainda a subir as es­cadas, começou: 520, 522... Fi-lo parar. Primeiro devia ler a frase que tinha escrito no caderno. Refilou um bocado, mas leu. De­pois, continuou a contagem. Era ótimo que estivéssemos a entender-nos e eu sentia-me muito alegre com isso. Mas devo confessar que ter na minha frente um menino a olhar para a parede e a contar de seguida era, no mínimo, monocórdico e aborrecido. Lembrei-me então de lhe sugerir uma divisão do tempo: metade para a tão amada contagem, a outra metade para “contas com letras”.

“Contas com letras? Isso existe?”

“Sim, com sinais de – de + e de =. Queres ver?” Escrevi: Bola – b + c =

Achou muita graça, resolveu esta conta e muitas mais. Cola, rola, sola, mola, tola, gola foram, ao fim de algum tempo os re­sultados das primeiras contas com letras que lhe passei. Outras de maior complexidade haviam de ter lugar em futuros encon­tros. No final deste, lembrei-o de que tinha de fazer o novo re­gisto da contagem. Preparava-se para copiar a frase do dia ante­rior, substituindo o 519 pelo número a que chegara, mas eu ex­pliquei-lhe que, se na contagem ele chegava cada vez mais longe, a frase também tinha de o levar um pouco mais longe na apren­dizagem. Contrariado e com a minha ajuda, escreveu: “No dia 10/11, ficamos em 987.”

O caminho estava descoberto.

A escrita da frase, progressivamente aumentada, conduzia-o à análise das palavras, à descoberta de alguns sons, à consolida­ção de outros. Constituía-se, pois, como um bom momento de aprendizagem da leitura. Tornava-se, no entanto, necessário que a linguagem escrita fosse ganhando terreno e assumisse um ca­ráter mais sistemático no nosso tempo de encontro.

E assim aconteceu. A contagem não foi abandonada, mas, com intervalos maiores entre os números (de 5 em 5, de 10 em 10), passou para segundo plano. Assim, só depois das férias de Natal, com grande alegria, chegou à meta dos dez mil. Também foi com grande alegria que chegou ao final do ano letivo a ler com fluência e gosto.

Se eu tivesse feito braço de ferro com o menino e declarasse que a matemática não era para ali chamada, teria esta história acabado bem? Creio que não. É minha convicção que, sem nunca deixar de ter bem presente o objetivo principal, a negociação com as crianças é a via que melhor as predispõe para a aprendi­zagem.

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* Paráfrase de uma expressão de João dos Santos, que dá título ao livro, "Se não sabe porque é que pergunta? - conversas com João Sousa Monteiro", Lisboa, Assírio & Alvim, 2004