A minha voz na Escola é múltipla. É a minha e é a deles, dos alunos, que são crianças ou adolescentes. Para ser ouvida e levada em conta, muitas vezes, por ansia ou falta de jeito, conseguimos dificultar o que é fácil [para fugir do "facilitismo?"] e complicar o simples. Algumas escolas introduziram Aulas de Filosofia, para crianças. Institui-se um horário de reflexão, impôs-se mais uma inutilidade administrativa, fazendo do tempo para pensar uma disciplina, que será útil, certamente, mas mais à frente. Com os mais pequenos, o mais sensato, é fazer do que acontece no dia-a-dia [da escola e não só] motivos para pensar. Porque «A missão do professor não é dar as respostas prontas. As respostas estão nos livros, estão na Internet. A missão do professor é provocar a inteligência, é provocar o espanto»[1]. E com o espanto, a curiosidade não tem como não chegar, alimentada pelas perguntas que o espanto coloca em nós. Só é preciso aprender a escutar! [2] Exemplificando:
Um grupo de crianças do Jardim de infância atravessou o rio Tejo, em “viajem de estudo”. Fizeram a viagem num dos sentidos pela Ponte 25 de Abril, e regressaram dentro do mesmo autocarro de ferry-boat. Quando me relataram essa fantástica manhã, pedi detalhes. Foi-me dito que de cima da ponte se viam barcos, muitos barcos, e o rio. Em tom de espanto perguntei: o rio? Então, se o rio já lá estava, como é que eles fizeram a ponte? Ou terá sido o contrário? Não, o rio já lá estava! Se não para que era precisa a ponte? Falámos imenso sobre isto, e eles não souberam resolver: os pilares dentro de água confundiam-nos. Falámos das pontes pequenas que, porque não tinham o pilares dentro de água, encaixavam-se melhor na seu modo de pensar uma ponte. E os pilares da ponte 25 de Abril, como é que se apoiam no rio? − foi a pergunta que ficou no ar, à procura de encontrar a resposta.
Quando três crianças do Jardim de Infância quiseram aprender os números, a escrever a sucessão numérica, arranjei papel quadriculado e mostrei os números de zero a nove, na sua sucessão “mecânica”. Não se tratava de saber se 35 era trinta e cinco,[3] mas que era apenas um 3 com um 5... e que imediatamente depois vinha o 3 com um 6. Facilmente entendidos, apresentaram no dia seguinte a sucessão completa até 99! E depois? – Ficou a pergunta no ar. Coloquei duas hipóteses: ou não há mais números ou há, e vocês não sabem. Sem solução à vista, surgiu dias depois a resposta, logo transformada em hipótese: há mais números porque o meu pai disse que havia o mil! E sendo verdade,[4] vimos que seria necessário passar de dois dígitos para três: o cem! E depois? Depois vocês continuam. E continuaram 1001 [que disseram ser cem e um]... 1002... 1003. Quando chegaram a 10010 e 10011, uma criança disse: Isto está mal! Confirmei e perguntei: como descobriste ... se até aqui achaste que estava “bem”? Porque tem muitos números – respondeu! E tivemos que voltar um pouco atrás, para perceber, que de três a quatro algarismos tinham chegado muito depressa.
Outras vezes, do nada ou perto disso, surge motivo para conversa. Como no dia em que recorri a uma enciclopédia para ver uma coisa simples. Foi um momento de verdadeiro espanto para os miúdos: o professor não sabe! − li nos seus olhos. E perguntei-lhes se eles pensavam que os professores sabiam tudo. As opiniões não foram claras. Alguns achavam que sim. A vida ainda não lhes tinha feito percorrer muitos caminhos... nem dado a conhecer muitos professores.
Uma simples frase, por mais absurda [precisamente porque é absurda ou parece sê-lo] pode espantar-nos e levar à reflexão: “HOJE LEVA H AMANHÃ NÃO” – deixei escrito no quadro. Não foi fácil. Como é possível, de hoje para amanhã, perder-se o H?
Não sei quantos se espantaram no meio disto tudo. Mas sei que o espanto de um pode ser contagiante, e arrastar a curiosidade dos que estão à sua volta. Mesmo nós podemos contagiar com o nosso espanto, se soubermos fazê-lo genuinamente.
Pena que tantos se contentem em apenas responder às perguntas das crianças, quando muito mais haveria para aprender no percurso que leva até à resposta, pensando por si, com os outros.
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* Publicado inicialmente em «O "professor de espantos". Em vez de motivar espantar» [LER>>>]
[1] Mesmo sabendo que não tem que espantar o tempo todo (Ver “Rubem Alves, o professor de espantos", TV Câmara).
[2] A «pedagogia de projecto» procura ser a tradução de uma prática atenta a esta escuta. E o Primeiro Ciclo que, juntamente com o Pré-escolar, melhor traduz, numa prática, uma visão transdisciplinar, no desenvolvimento do currículo, é provavelmente o nível de escolaridade que mais pede um professor de espantos: um professor preocupado a ensinar a dominar os instrumentos de cultura, de que as crianças precisam para satisfazerem a sua curiosidade, e não tanto a encher as suas cabeças de «coisas» que, a prazo, a cabeça não conserva.
[3] Não era a consciência da quantidade que estava em jogo.
[4] Porque o pai disse que havia, e o pai só fala verdade, não mente, embora às vezes se engane.
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