sábado, 15 de agosto de 2020

Leitura, escrita e resolução de problemas

Texto escrito a partir de uma actividade desenvolvida pelos alunos do 1º Ano da Escola do Cabanões [1] Avintes, Vila Nova de Gaia - Ano lectivo: 2016/17 - Professora responsável: Fernanda Santos.

O professor diz: Tu tinhas quatro lápis de cor e o teu pai deu-te mais dois. Com quantos lápis de cor ficaste?
Responde o aluno: Mas eu tenho uma caixa cheia de lápis!
O professor podia dizer que queria que ele imaginasse, ou podia arranjar uma personagem para representar esse papel; podia mesmo pensar que a criança estava na brincadeira, feito gozão, e zangar-se, mas preferiu outra abordagem: Estou a ver. És capaz de me dizer quantos lápis tens? Agora tira os lápis da caixa e deixa ficar só dois. E agora põe mais dois. Quantos lápis estão agora na caixa? E começaram a escrever a história da conversa que tinham acabado de ter os dois.

O registo áudio permite que as crianças se ouçam e 
se confrontem com as suas dificuldades
Aprender a resolver problemas precisa de uma imaginação desenvolvida. Muitos dirão que não é de imaginação mas de capacidade de abstracção. Também é verdade. Mas a capacidade de abstracção não encontra terreno fértil para se desenvolver numa mente incapaz de imaginar outros mundos, outras realidades possíveis, a partir de mundos conhecidos.
A resolução de problemas é apontada por Smole e Diniz [2] como um contexto que potencia o desenvolvimento da aprendizagem da matemática: desenvolve procedimentos e modos de pensar, desenvolve habilidades básicas como verbalizar, ler, interpretar e produzir textos em diferentes áreas do conhecimento, que podem estar envolvidas numa determinada situação. Isso indica que a resolução de problemas deve ser vista como uma abordagem de ensino, e que o professor, ao servir-se dela, estará a contribuir para o desenvolvimento da capacidade de comunicação e de competências de leitura dos seus alunos.
Numa abordagem assim, aprender a resolver problemas passa pelo desenvolvimento da capacidade de elaborar/projectar representações de caminhos a seguir e de testar a sua validade, integrados num processo no qual a representação escrita [instrumento fundamental ao desenvolvimento de um pensamento estruturado] assume um papel determinante.

PROBLEMAS CONVENCIONAIS

POR VEZES, destes trabalhos de textos, saem outros desafios, novos problemas a serem resolvidos, que não têm que ver necessariamente com a matemática, mas com aquela habilidade em fazer perguntas, que a matemática não dispensa. Veja-se, por exemplo, o problema da Mara e da Francisca. Trabalhado como história, o seu enunciado [para além do tratamento de erros - de concordância, neste caso] abre espaço a perguntas que não têm a ver com a solução do problema, mas com a história que ele pode contar: que nomes dar à avó e à neta; onde vivem ou com quem vivem; como eram os bolos [tipo queque, talvez]; porque é que a avó resolveu fazer os bolos; porque é que a neta só comeu um, etc. Se tivermos a habilidade para trabalhar as suas personagens e o seu enredo com as crianças, talvez surja qualquer coisa como isto:
A Ana, neta da avó Maria, é uma menina que gosta muito de doces e a sua avó sabe disso.
Um dia a avó Maria preparou dez bolos, cada um do tamanho de um queque. E quando chegou a casa, a Ana preparou-se para comer os bolos todos, mas a avó só deixou que ela comesse um:
- Comer muitos bolos, de uma só vez, faz mal à barriga - disse a avó. - Além disso os teus pais e os teus irmãos também gostam.

E assim se criam condições ao aparecimento de outras perguntas, outros desafios, novos problemas.

Daniel Lousada

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NOTAS
[1] Actividade inspirada em propostas desenvolvidas no livro "Ler Escrever e Resolver Problemas", de Kátia Stocco Smole e Maria Ignez Dinis (org.), Porto Alegre, Artmed, 2001, do qual recolhem alguma da sua fundamentação.
[2] «Ler, escrever e resolver proble­mas». Porto Alegre, Artmed, 2001: p. 95
[3] «O trabalho centrado exclusivamente na proposição e na resolução de problemas convencionais gera nos alunos atitudes inadequadas frente ao que significa pensar em matemática» [SMOLE e DINIZ, orgs, P.90], e isto porque as respostas são condicionadas por expressões como «ao todo», «total» ou «juntos», «resta», «sobra», «perdi»..., que as crianças rapidamente associam a uma operação aritmética, desviando-se do que lhes é pedido.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Metáforas: aprender a desenhá-las

Afonso Cruz, "Vamos comprar um poeta»
Editorial Caminho, Lisboa, 2016
Cláudia Xavier e Daniel Lousada
[DISPONÍVEL TAMBÉM EM PDF >>>]

Leio o curto excerto do livro de AFONSO CRUZ «Vamos Comprar um Poeta»(1) e, antes de qualquer exploração, comentário, ou pergunta, escrevo no quadro dois versos de Carlos DRUMMOND DE ANDRADE,(2) para ajudar a entrar no texto, contornando-o: (3)

«O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar
»

Vou até à janela, que dá para o recreio da escola, e num misto de surpresa e de espanto digo: – o mundo é grande e cabe nesta janela sobre... – Esperava que alguém conclui-se: sobre o recreio. Mas nem sempre as coisas se passam da forma como nós as planeámos – Após alguns segundos de impasse, marcados pela ausência de resposta, ouço dizer “MAR”. Desisto do recreio e centro-me então no mar.

– O mar deve dizer muito a quem escreveu estes dois versos! Não sei o que diz. Mas sei que será qualquer coisa que está no Mar ou junto do Mar.

E fomos à procura de palavras [que indicam coisas] que o mar tem [FIGURA 2] para através delas, talvez, procurar chegar ao que o mar tem para dizer. Procurámos, depois, o que estas palavras nos levam a dizer sobre elas. E com o que fomos levados a dizer, escrevemos [FIGURA 3]:

PASSÁMOS À REVISÃO [trabalho de texto, a partir das frases produzidas]

Resolvida a questão da ortografia [tema que retomámos mais à frente] passámos à interrogação do texto:

– O mar tem casa? Não sei! Eu não vejo o mar dentro de casa! Para mim o mar é uma casa. Só que não é uma casa qualquer: é uma casa viva! Como podemos dizer então? [FIGURA 4].

«OS BÚZIOS GUARDAM SEGREDOS QUE O MAR ESCONDE»

− Será que guardam? Quando encontro um búzio, chego-o ao ouvido e ouço os segredos que tem. Então, além de guardar, ele também pode:

Reescrevemos a frase de forma a acolher as novas possibilidades [FIGURAS 5 A-B]. Escolhemos os verbos e a organização das palavras na frase que nos dá mais prazer ouvir [FIGURAS 5 C-D ](4). E, numa espécie de jogo, procuramos desenhar o texto, à procura da forma de dizer que melhor o serve

Nestes jogos de escrita, não raras vezes, acontece provocarmos o escrevente aprendiz com propostas de formas, que escapam a qualquer modo de lhe dar voz. Não a forma marcada pela ordem que distribui as palavras na frase [como se observa nas FIGURAS 5 C-D ], mas pela mancha, com os
 seus contornos, que “desenha” a frase na página [FIGURAS 6/7(5) – são “desenhos” que encontramos em muitos poemas que lemos, indiferentes a pausas e continuidades entre os seus versos, e que exploramos, quando a oportunidade surge, no decurso do trabalho de texto, criando desenhos parecidos, na fixação de uma frase, de uma expressão, que pode ter em si a semente de um verso. Porque, no texto poético, além da atenção à escrita, com todas as palavras no lugar, às vezes, parece faltar o contorno certo, que ajuda a desenhar o sentido. E, sem disso nos darmos conta, damos por nós a organizar versos para um poema [FIGURA 8]. Não sendo evidentes todas as pausas e continuidades entre os versos, ou entre as palavras no interior de cada um, abre-se ao leitor a liberdade [responsabilidade], por inteiro, de encontrar a voz que melhor serve a ligação deste ao poema.(6)

Entretanto, o texto de Afonso Cruz ficou lá trás. Mas por hoje já chega de janelas: voltaremos a ele numa próxima oportunidade, e teremos, talvez, outras “janelas” por onde olhar, outras “paisagens” para desenhar.

A QUESTÃO ORTOGRÁFICA 
Detectámos dois erros:










* Se fosse ao contrário poder-se-ia considerar uma dificuldade de 
“Correspondência Fonográfica Irregular” [duplo “s” em vez de “ç”]. Mas, tal como se apresenta [não sendo distração], o mais provável é tratar-se de um erro relacionado com dificuldades de pronúncia, localizado nesta criança, e que, por isso, será apenas trabalhado com ela.

** Forma do verbo ondular, a trabalhar em contextos significativos – escrita de frases que explorem diversas formas e tempos do verbo ondular e a escrita de palavras que pertençam à mesma família: ondulação, ondulado, ondulante, ondulatório, onduloso.


NOTA FINAL

Saber o que é uma metáfora não é obrigação dos alunos do 1o Ciclo. Mas tal como ensinamos a escrever, utilizando adjectivos, ou pronomes, sem o conhecimento explícito da gramática, também podemos ensinar a usar esta ou aquela figura de estilo, baseados na experiência que os alunos têm com elas, a partir dos textos que, com essa intenção, lemos para elas. E ensinamos a escrever metáforas sem nos referirmos a elas, baseados no princípio de que «é a fazer que se aprende a fazer». Claro que chegará o tempo em que não basta dizer que o mundo cabe nesta janela sobre o mar: será preciso que, ao exercício de escrita, que as “janelas sobre o mar” nos sugerem, se acrescente o conhecimento que permite que a competência se consolide, tal como, por vezes, precisamos da gramática, para chegar à lógica da estrutura de uma frase que nos confunde. Neste sentido, quantas mais” janelas se abrirem” ao escrevente aprendiz, mais fácil será, quando a necessidade chegar, aceder ao conhecimento, que consolida a competência desejada.
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1. Editorial Caminho, Lisboa, 2016: pp. 78-79 [Não é um livro recomendado para crianças, mas para jovens que frequentam o 9o Ano. Mas como refere Afonso cruz, pela boca de uma das suas personagens, «se só leres livros para crianças não deixas de ser criança», concluindo que a melhor maneira de sair da infância é a ler: «já que se perde tanto, pelo menos levamos connosco malas de histórias»  ̶  in: “Paz traz paz”, Companhia das Letras, Lisboa, 2019: p. 9].
2. O mundo é grande, in: Amar se aprende amando, Obra poética, Vol. 5, Publicações Europa-América, Lisboa, 2008: p. 43.
3. «Perante a dificuldade de um texto, nada melhor do que a ajuda de outro texto que, inspirado por ele, salta fora dele, para explorar outros caminhos». In: LOUSADA, D. (coord) Escutar a palavra desenhar o texto. Desenhar o texto escutar a palavra, Ágora Gaia, V.N.Gaia, 2019: p. 37.
4. Situação que explorámos noutras frases, como é possível observar, comparando o texto original com a versão final, que apresentamos na FIGURA 8.
5. Sobre este assunto, ler «A influência do verso na voz a dar ao poema», in: LOUSADA, D. (coord.) Escutar a palavra desenhar o texto. Desenhar o texto escutar a palavra, Ágora Gaia, V.N.Gaia, 2019: pp. 193-197.
6. Uma prática assim, contribui para passar a ideia de que é ao leitor que compete encontrar a voz do texto, independentemente das suas marcas [pontuação marcada por critérios sintácticos, na prosa, ou tamanho do verso, no poema].