Afonso Cruz, "Vamos comprar um poeta» Editorial Caminho, Lisboa, 2016 |
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Leio o curto excerto do livro de AFONSO CRUZ «Vamos Comprar um Poeta»(1) e, antes de qualquer exploração, comentário, ou pergunta, escrevo no quadro dois versos de Carlos DRUMMOND DE ANDRADE,(2) para ajudar a entrar no texto, contornando-o: (3)
«O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar».
Vou até à janela, que dá para o recreio da escola, e num misto de surpresa e de espanto digo: – o mundo é grande e cabe nesta janela sobre... – Esperava que alguém conclui-se: sobre o recreio. Mas nem sempre as coisas se passam da forma como nós as planeámos – Após alguns segundos de impasse, marcados pela ausência de resposta, ouço dizer “MAR”. Desisto do recreio e centro-me então no mar.
– O mar deve dizer muito a quem escreveu estes dois versos! Não sei o que diz. Mas sei que será qualquer coisa que está no Mar ou junto do Mar.
PASSÁMOS À REVISÃO [trabalho de texto, a partir das frases produzidas]
Resolvida a questão da ortografia [tema que retomámos mais à frente] passámos à interrogação do texto:
– O mar tem casa? Não sei! Eu não vejo o mar dentro de casa! Para mim o mar é uma casa. Só que não é uma casa qualquer: é uma casa viva! Como podemos dizer então? [FIGURA 4].
«OS BÚZIOS GUARDAM SEGREDOS QUE O MAR ESCONDE»
− Será que guardam? Quando encontro um búzio, chego-o ao ouvido e ouço os segredos que tem. Então, além de guardar, ele também pode:
Reescrevemos a frase de forma a acolher as novas possibilidades [FIGURAS 5 A-B]. Escolhemos os verbos e a organização das palavras na frase que nos dá mais prazer ouvir [FIGURAS 5 C-D ](4). E, numa espécie de jogo, procuramos desenhar o texto, à procura da forma de dizer que melhor o serve.
Nestes jogos de escrita, não raras vezes, acontece provocarmos o escrevente aprendiz com propostas de formas, que escapam a qualquer modo de lhe dar voz. Não a forma marcada pela ordem que distribui as palavras na frase [como se observa nas FIGURAS 5 C-D ], mas pela mancha, com os
seus contornos, que “desenha” a frase na página [FIGURAS 6/7] (5) – são “desenhos” que encontramos em muitos poemas que lemos, indiferentes a pausas e continuidades entre os seus versos, e que exploramos, quando a oportunidade surge, no decurso do trabalho de texto, criando desenhos parecidos, na fixação de uma frase, de uma expressão, que pode ter em si a semente de um verso. Porque, no texto poético, além da atenção à escrita, com todas as palavras no lugar, às vezes, parece faltar o contorno certo, que ajuda a desenhar o sentido. E, sem disso nos darmos conta, damos por nós a organizar versos para um poema [FIGURA 8]. Não sendo evidentes todas as pausas e continuidades entre os versos, ou entre as palavras no interior de cada um, abre-se ao leitor a liberdade [responsabilidade], por inteiro, de encontrar a voz que melhor serve a ligação deste ao poema.(6)
Entretanto, o texto de Afonso Cruz ficou lá trás. Mas por hoje já chega de janelas: voltaremos a ele numa próxima oportunidade, e teremos, talvez, outras “janelas” por onde olhar, outras “paisagens” para desenhar.
A QUESTÃO ORTOGRÁFICA
Detectámos dois erros:
** Forma do verbo ondular, a trabalhar em contextos significativos – escrita de frases que explorem diversas formas e tempos do verbo ondular e a escrita de palavras que pertençam à mesma família: ondulação, ondulado, ondulante, ondulatório, onduloso.
NOTA FINAL
Saber o que é uma metáfora não é obrigação dos alunos do 1o Ciclo. Mas tal como ensinamos a escrever, utilizando adjectivos, ou pronomes, sem o conhecimento explícito da gramática, também podemos ensinar a usar esta ou aquela figura de estilo, baseados na experiência que os alunos têm com elas, a partir dos textos que, com essa intenção, lemos para elas. E ensinamos a escrever metáforas sem nos referirmos a elas, baseados no princípio de que «é a fazer que se aprende a fazer». Claro que chegará o tempo em que não basta dizer que o mundo cabe nesta janela sobre o mar: será preciso que, ao exercício de escrita, que as “janelas sobre o mar” nos sugerem, se acrescente o conhecimento que permite que a competência se consolide, tal como, por vezes, precisamos da gramática, para chegar à lógica da estrutura de uma frase que nos confunde. Neste sentido, quantas mais” janelas se abrirem” ao escrevente aprendiz, mais fácil será, quando a necessidade chegar, aceder ao conhecimento, que consolida a competência desejada.
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1. Editorial Caminho, Lisboa, 2016: pp. 78-79 [Não é um livro recomendado para crianças, mas para jovens que frequentam o 9o Ano. Mas como refere Afonso cruz, pela boca de uma das suas personagens, «se só leres livros para crianças não deixas de ser criança», concluindo que a melhor maneira de sair da infância é a ler: «já que se perde tanto, pelo menos levamos connosco malas de histórias» ̶ in: “Paz traz paz”, Companhia das Letras, Lisboa, 2019: p. 9].
2. O mundo é grande, in: Amar se aprende amando, Obra poética, Vol. 5, Publicações Europa-América, Lisboa, 2008: p. 43.
3. «Perante a dificuldade de um texto, nada melhor do que a ajuda de outro texto que, inspirado por ele, salta fora dele, para explorar outros caminhos». In: LOUSADA, D. (coord) Escutar a palavra desenhar o texto. Desenhar o texto escutar a palavra, Ágora Gaia, V.N.Gaia, 2019: p. 37.
4. Situação que explorámos noutras frases, como é possível observar, comparando o texto original com a versão final, que apresentamos na FIGURA 8.
5. Sobre este assunto, ler «A influência do verso na voz a dar ao poema», in: LOUSADA, D. (coord.) Escutar a palavra desenhar o texto. Desenhar o texto escutar a palavra, Ágora Gaia, V.N.Gaia, 2019: pp. 193-197.
6. Uma prática assim, contribui para passar a ideia de que é ao leitor que compete encontrar a voz do texto, independentemente das suas marcas [pontuação marcada por critérios sintácticos, na prosa, ou tamanho do verso, no poema].
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