quinta-feira, 29 de maio de 2025

Em vez de educar para a cidadania, porque não educar para a felicidade?

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Até onde a leitura de um poema me levou — 2 

«A felicidade é um programa de consumo — leio num poema de Luísa Freire [1]. E vejo-me a reagir a um conceito, amarrado a uma sociedade de consumo, que faz da felicidade um produto transacionável. E, num ápice, ouço-me a divagar sobre a felicidade em contexto escolar, normalmente explorada na área disciplinar de Educação para a Cidadania!

O que é ser feliz? E o que é ser um bom cidadão ou cidadão de pleno direito? — dir-se-á que «bom» ou de «pleno direito», associado à palavra cidadão, é uma redundância.

De que é feito o percurso que nos leva a uma vida feliz? De que é feito o percurso que nos leva ao exercício de uma cidadania plena? E que relação entre os dois percursos?

«Sabemos muito pouco sobre o conteúdo da felicidade» — diz Vitória Camps [2], e continua«Do conceito de felicidade derivam todos os valores que temos assumido ao longo dos séculos da história humana e ao longo da experiência vivida por cada indivíduo», identificando a amizade, a moderação, o autocontrolo, a cultura, a liberdade, a solidariedade…, como alguns destes valores, valores estes que podem ser encontrados no conjunto de valores da educação para a cidadania. E daqui a relação entre cidadania e felicidade.

A relação entre o conceito de felicidade e o conceito de cidadania é, assim, evidente. Não é possível um sem o outro [3]. Confundem-se no mesmo percurso. No entanto, dou a primazia à felicidade. Porquê? Porque a educação para a cidadania não serve de nada, sem o horizonte de uma vida feliz. 

Coloco, então, a felicidade no horizonte, não como uma disciplina escolar, mas como «guia» do currículo. O exercício da cidadania está presente, claro. Mas as perguntas mais eficazes é pelo lado da felicidade que as faço. Até porque, perguntar sobre o que fazer para se ser feliz é muito mais mobilizador do que perguntar sobre o que fazer para se ser cidadão! — «Ser solidário faz-me feliz», ouvimos dizer tantas vezes. Ninguém diz que optou por ser solidário para ser bom cidadão! — Não é , talvez, por acaso, que os livros de auto-ajuda vendem tanto.

Enquanto isto (que escrevo) ouço, na Antena 3, o poeta e professor António Carlos Cortez dizer que observa nos seus alunos «uma solidão enorme, “é o andar só por entre a gente” de que fala Camões […]. Porque é que os alunos não têm história, história da cultura, em vez da cidadania? A cidadania está nos poemas, está nos romances, está no teatro» — continua Carlos Cortez, no que me parece ser a defesa da ideia de que a cidadania não tem um espaço único, com um horário fixo num calendário, para ser levada à prática — «As humanidades, as artes, põem-nos em contacto com uma coisa fundamental, que a escola perdeu há muito, que é ensinar para a compreensão do humano» [4]. A educação para a cidadania passa por aqui. E a conquista da felicidade também. Uma conquista que passa pela cultura.

Que podemos fazer para sermos felizes (ficarmos bem), hoje, aqui neste espaço que é, por exemplo, a sala de aula? Que podemos fazer todos, nestes 45 ou 90 minutos em que estamos juntos, para gostar disto, de que não gostamos nada? Haverá alguém que gosta? E se há, porque não convidar a dizer porquê, e nos ensine a gostar? — «Gostava de gostar de gostar», escreveu Fernando Pessoa, através de Álvaro de Campos. Ao que Adília Lopes respondeu: «Eu gosto de gostar, tenho sorte» [5].

A felicidade é um estado (de alma). Mas não é um estado a que se chegue sozinho. É uma busca ou, como escreveu Bertrand Russel [6], uma conquista, que aprendemos a conquistar com o outro. Ninguém aprende a ser feliz sozinho.

Daniel Lousada

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[1] Luísa Freire, «Pensar o mundo III», 2021, in Atravessar o Frio II, Assírio & Alvim, Lisboa, 2025: pp. 219-227. 

[2] Vitoria Camps, Elogia da felicidade (versão digital), Edições 70, Lisboa, 2022.

[3] Para Aristóteles, a «felicidade é o objectivo final da vida humana, o bem supremo é o fim último de todas as acções. Ela não é um estado passageiro de prazer, mas sim uma vida plena e completa, realizada através da virtude e do desenvolvimento das capacidades racionais».

[4] Programa Prova Oral, 28.05.2025: 19.00-20.00 horas.

[5] Daniel Lousada, Aprender a gostar de gostar, Ágora Gaia, 2021 [LER >>>].

[6] Bertrand Russel, A conquista da felicidade, Guimarães Editores Lda., Lisboa, 2006.

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