terça-feira, 8 de novembro de 2022

"Todos os dias os dias nascem" - Proposta de trabalho de texto a partir de um poema de Alberto Pimenta

Excerto deLe belle aux anthocyanes
Ler um texto [principalmente se for literário] com prazer, passa por saber encontrar a “música” que melhor o serve. 

Observando o excerto do poema de Alberto Pimenta* [VER VÍDEO], vemos que ele se desenvolve num jogo de repetições, à volta de um único acontecimento: os dias nascem todos os dias. O interesse do poema não está, portanto, na informação que ele regista [como em qualquer poema aliás] mas na composição [sonora] que Alberto Pimenta compôs à volta de um acontecimento tão banal, que nos permite, simplesmente, explorar diferentes formas de “tocar” a leitura. Com um reduzido número de palavras [apenas três – ou quatro se contarmos o artigo “os”] presentes no vocabulário de qualquer criança em idade escolar [ou mesmo mais novas], é um texto que pode ser “lido” com as crianças que dão os primeiros passos no domínio da leitura, num jogo que pretende explorar, apenas, a música de que é feita cada leitura. Porque o interesse da leitura, neste jogo, está em aprender a chegar à música do texto que melhor toca os nossos sentidos e onde está, tantas vezes, muito do seu significado**. Daqui a importância que dou à “partitura do texto”. Trata-se de ensinar a sentir a sua pulsação o mais cedo possível: algo fundamental para entrar na leitura [ou leituras] de um texto [poema neste caso] e que a sua pontuação, quando existe, nem sempre, ou quase nunca, serve para chegar àquela pulsação por inteiro.

FIGURA 1 -  Corresponde às leituras gravadas no VÍDEO  
Entrando na leitura deste poema, tacteamo-lo com a voz alta, à procura da música que melhor o serve. E observaremos, certamente, que há leituras que soam melhor ao ouvido. E, se a actividade se desenvolver com crianças mais crescidas, vamos à procura de saber porquê: às vezes, o que soa melhor corresponde a uma melhor leitura. E talvez possamos eleger, das “leituras” representadas na
FIGURA 1, aquela que melhor se dá à escuta.

Para além da leitura, este tipo de textos também permite explorar a escrita, em jogos simples de iniciação [FIGURA 2]:

  • FIGURA 2
    Ensaiar outras combinações com as mesmas palavras;
  • Substituir a forma verbal: os dias chegam…;
  • Recriar com outras palavras: o sol nasce…; a noite cai…; a lua chega…;
  • Colocar a noite sem tirar o dia: todos os dias a noite cai…
  • Tirar o dia e colocar a noite e a lua: todas as noites a lua vem…
  • Substituir o dia pela manhã e trazer o sol: todas as manhãs nasce o sol…

Este jogo de combinações, dentro do mesmo conjunto de palavras, sem outra preocupação que não seja estar atento às modulações sonoras da voz alta quando lê, ajuda a perceber que a posição que a palavra ocupa na frase [e a intenção com que é repetida]*** não é indiferente ao prazer do texto. E quando desafiamos as crianças a substituir palavras do texto, por novas palavras do seu universo linguístico, para além de favorecermos o aumento do vocabulário visual básico de que necessitam, para as suas primeiras aventuras no mundo da escrita, temos a oportunidade de mostrar que estas substituições obrigam, muitas vezes, a fazer pequenos [ou grandes] ajustes para que o texto as aceite: uma palavra que muda de género, outra que vira do plural para o singular, e outras intervenções que, com o tempo, serão mais complexas.

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* Excerto de "Le belle aux anthocyanes", in O labirintodonte, Porto, 7 Nós, 2012: p. 27
** A música está presente em [quase] todas as formas de expressão. Daqui o meu 
espanto quando assisto à sua desvalorização no currículo escolar.
*** A repetição de uma ou mais palavras na frase ou em frases seguidas, com intenção comunicativa, é das habilidades de escrita mais difíceis de ensinar. Em regra, as repetições que vemos nos textos de crianças, que estão no início da sua aprendizagem, perturbam mais do que reforçam, a comunicação. Porque há um sentido estético nestas repetições, a que só é possível aceder se, desde muito cedo, o escrevente aprendiz tiver oportunidade de escrever os seus textos, recriando os escritores que, como Alberto Pimenta, tiram partido destas repetições.

Relato de Daniel Lousada

domingo, 6 de novembro de 2022

Onde mora o azul, o vermelho, o verde e o amarelo

TRABALHO REALIZADO COM UMA TURMA DO 1º ANO - Iniciação à escrita

Em pequenos grupos elaborámos listas de palavras, que nos indiquem onde podemos encontrar estas cores.

De seguida, as listas de palavras mudaram de grupo e colocámos outras perguntas: Com quem moram? que gostam de fazer?
  
As crianças são sempre desafiadas a escrever autonomamente, a registar antes de dizer, ensaiando, de acordo com o seu nível de desenvolvimento, as suas hipóteses. Para o efeito, socorrem-se dos diversos instrumentos disponíveis: listas de palavras conhecidas, quadros silábicos, cartazes de letras, análise dos sons das palavras que a fala nos traz.

FIGURA 1
Enquanto as crianças ensaiam os seus registos, circulo pela sala, respondo às perguntas que me colocam, muitas vezes, com novos desafios, dou pistas: quantas vezes abres a boca para dizer essa palavra?; como pronuncias [como dizes] o primeiro bocadinho?; que outras palavras conheces que começam da mesma maneira?

Concluídas as listas de palavras por cada um dos grupos, construímos, no quadro, uma tabela de dupla entrada [Figura 1] onde registámos as propostas sugeridas para cada cor.

E, finalmente, escrevemos uma frase para cada cor, tendo a tabela como guia:  
O azul mora no céu
com as estrelas
e gosta de voar

FIGURA 2

Fazem-se mais perguntas que permitam continuar a frase
:
– Com quem? – com os pássaros
– Quando? – em dias de sol

Convidei os voluntários a ler os textos depois de prontos, discutindo a leitura que nos dá mais prazer ouviro ritmo empregado, a entoação, ...

Desfiei as crianças a dizer os textos como se fossem elas as cores, reescrevendo-os, depois, na primeira pessoa.

Analisamos as diferenças verificadas na escrita.

Podíamos ainda prolongar o desafio com outras conjugações [Tu és o azul, moras no céu…; Nós somos o azul, moramos no céu…], mas isso ficou para outras escritas.




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* Professora do 1º Ciclo - EB1 do Freixieiro, Oliveira do Douro, Vila Novo de Gaia

Fluência de leitura e leitura rápida em voz em alta - uma proposta de trabalho de texto com Alberto Pimenta

VÍDEO 1  
LER E RECRIAR "CIRCUNCISÃO"

Sabemos como a habilidade de ler rapidamente, em voz alta, influencia a fluência de leitura. Com isto não queremos defender o critério da rapidez como critério determinante na avaliação de fluência de leitura que os nossos jovens leitores revelam, e muito menos apoiar testes de rapidez fazendo da leitura uma corrida. Mas o facto de não ser determinante, não quer dizer que não seja importante! Quantos de nós não se viu já confrontado com a necessidade de ler rapidamente um livro, na procura do conhecimento da obra, de uma informação, de uma ideia?

Ora, estes textos, que se desenrolam de uma forma repetitiva, permitem aos nossos jovens treinar a rapidez na leitura, de um forma divertida, numa espécie de jogo, onde o que conta é o processo automático da descodificação [tal como acontece com a lenga-lenga ou o trava-línguas], resguardando desta obrigação os textos que pedem uma leitura tranquila. 

Então lemos o poema, primeiro como qualquer poema ou texto deve ser lido, com a voz que ele nos pede, e depois tão depressa quanto formos capazes de ler. Para isso socorremo-nos de uma leitura previamente gravada num vídeo, que dá conta das duas leituras [VER VÍDEO 1]. E, de seguida, cada um leu o poema, primeiro com a voz que entendeu dar-lhe e, depois, com a velocidade de que foi capaz.

VÍDEO 2
Finalmente, recriamos este poema noutras escritas: (1) identificamos a palavra chave presente no poema [problema]; (2) fomos à procura de outras palavras que pudéssemos usar, num "poema" idêntico: frio, calor, sol, vento, chuva, tempo, temporal, dor, trovão, relâmpago...; (3) a palavra escolhida foi a palavra Tempo e, com ela, seguindo a estrutura do poema de Alberto Pimenta, "escrevemos" o nosso [VER VÍDEO 2].

A GRAMÁTICA VEIO A PROPÓSITO

Ao recriar este poema, tivemos a oportunidade de trabalhar a transição do discurso directo para o discurso indirecto. A ausência do travessão para indicar o discurso directo permitiu-nos questionar a necessidade do seu uso para distingui-lo do discurso indirecto: se as marcas gráficas convencionais, que orientam a leitura, não estão presentes, podemos deduzir a leitura a fazer pelo contexto. Como acontece, aliás, com muitos escritores conhecidos, o mais conhecido dos quais é José Saramago, que dispensa o uso do travessão nos seus livros, sem que isso impossibilite a identificação da fala das suas personagens. 

FIGURA 1
LER E RECRIAR "EXERCÍCIO DEMONSTRATIVO"

Exercício demonstrativo [FIGURA 1] é outro poema de Alberto Pimenta que permite leitura e trabalho de texto idêntico, mas mais exigente na procura da voz que melhor o serve. Com uma estrutura idêntica a "Circuncisão" permite que brinquemos com as palavras, recriando-o noutros "exercícios", como por exemplo: "Eu sou: eu. Sou quem sou: apenas eu. Tu és tu: não és eu. Tu e eu somos: nós...", etc. 


Relato de Daniel Lousada


sábado, 3 de setembro de 2022

ESCRITA: Ensinar e aprender através de um trabalho de texto

Aristides Custódio, Daniel Lousada e Fernanda Santos

Defender a escrita, num processo mais alargado de expressão livre, não significa deixar quem escreve ao abandono, até porque a escrita só é realmente livre se tiver condições para se desenvolver, se tiver ouvidos que saibam compreender os impasses em que, por vezes, o texto cai!

LER TEXTO COMPLETO >>> 

domingo, 28 de agosto de 2022

Coisas que não há que Há - Um poema, em vídeo, com todo um programa dentro

Daniel Lousada  

Um poema de Manuel António Pina para projectar o ano escolar: descobrir no programa "coisas que não há que há" e que "já houve e já não há", e todo o conjunto de coisas que andam por aí ... Fazer com o programa um roteiro de viagem e, como diz Rui Grácio, seleccionar aquilo que procuramos encontrar com ela.[1]


Se eu fosse professor outra vez, lia e dava a ler este poema [Ver vídeo], no primeiro dia de aulas, e procurava contaminar o programa, que tivesse para dar, com ele – contaminar de poesia, já se vê!

Há tantas coisas bonitas que não há. E não há, não apenas por não existirem, mas porque, muitas delas, andam algures por aí, sem se dar a conhecer, por alguém que as conheça.

A escola bem que podia ser um lugar de procura de tudo o que não há, por não sabermos que há; «de tudo o que eu nem posso imaginar / porque se o imaginasse já existia / embora num lugar onde só eu ia...»

Uma coisa me põe triste, desabafa Manuel António Pina a abrir o seu poema. Uma coisa que se transforma em tanta coisa, à medida que o poema avança e que podemos tomar como porta de entrada nos programas escolares, contaminando-os de poesia. Porque, afinal eles estão cheios de coisas que não há que há, porque à espera de se revelarem: «bichos que já houve e já não há / livros por ler, coisas por ver, /.../, pessoas tão boas ainda por nascer!»

De certa forma, vejo este poema como um roteiro a convidar-nos a encetar uma viagem na busca de coisas a descobrir. Quer dizer, a partir das leituras que fazemos do programa, ir à procura de tudo quanto ele tem para revelar. Então, nos primeiros dias de escola, ocupar-me-ia a fazer visitas guiadas ao programa. E, nestas visitas, aconteceria, certamente encontrar lugares já visitados [«lembranças de que não me lembro»] a pedirem novas visitas, outros a provocar desconfiança, contaminados por experiências mal sucedidas, e outros ainda que nem sabíamos que existiam, a provocar sentimentos a variar entre a curiosidade e a indiferença.[2] E a estas visitas aos lugares que somos todos obrigados a conhecer, juntaria propostas de outras visitas, sugeridas pelos interesses dos alunos: «tudo o que eu nem posso imaginar / porque se imaginasse já existia / embora num lugar onde só eu ia...». 

Nada disto é novidade. Há muito que muitos professores(as) fazem leituras do programa e convidam os seus alunos a falar do que gostariam de conhecer. Às vezes [muitas vezes, por sinal], acontece este ou aquele interesse demonstrado substituir um item do programa, porque responde ao mesmo objectivo. Aliás, um dos segredos da gestão flexível do currículo está aqui: nesta possibilidade de conciliar interesses particulares, com as obrigações colectivas que fazem o programa. Mas isto implica não fazer do manual escolar o programa, e ajudar a fazer, de cada interesse particular demonstrado, um projecto pessoal a partilhar.

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[1] Uma das dificuldades que podemos sentir em programar uma viagem consiste na selecção daquilo que procuramos encontrar com ela. In: Não percebo Poesia. Coimbra, Grácio Editor, 2013.

[2] Precisamente aqueles conteúdos para os quais mais precisamos que encontrar forma de captar a atenção do aluno. Porque para o que nos é indiferente não estamos nem aí.