«Gosto muito da palavra espanto», escrevi há tempos com o Luís {LER>>>}. Prefiro-a à palavra motivação”, que faz lembrar coisa de auto-ajuda. O espanto prende-nos os sentidos, interpela-nos e, por vezes, convida-nos à pergunta. Mas quando não convida...
O relato que trago aqui, registado numa das muitas histórias que a Manuela conta no seu livro, contém a descrição de um "espanto", que só interpelou a Manuela, e me fez pensar que nem sempre é útil ir atrás de respostas, em propostas de projectos, quando ninguém quer saber de perguntas. E não interessando a pergunta, ninguém quer saber da resposta, quanto mais inventar projectos — o que é preciso, por vezes, é prolongar a magia —. Para os seus alunos "flor candeeiro" só é candeeiro porque dá luz. Não fazem sentido perguntas. É uma das muitas magias com que a natureza nos brinda. Não sendo assim, seria flor, certamente, mas candeeiro não! Não há nada que espantar. E a Manuela deu conta disso, a tempo (Confesso que não sei se eu teria conseguido evitar a insistência na pergunta!).
O espanto «descreve a forte impressão originada por uma coisa inesperada e repentina» — diz Tolentino Mendonça —. «Prende a nossa atenção à maneira de um relâmpago». Na tradução que faz de Adorno «é um longo e inocente olhar sobre um objecto». É um olhar inocente porque a claridade repentina, que ilumina o objecto e faz virar a cabeça, faz com que o olhemos nas condições que o objecto marca. Ora, nem sempre, estas condições nos amarram a uma pergunta. E, quando não amarram, não faz falta fazê-la. Podemos estar perante, talvez, um espanto que a magia nos provoca. E, para o que é mágico, diria que a pergunta só atrapalha, mesmo. Daqui a importância de, por vez, resistir à pergunta que o espanto nos traz. Porque há o tempo da infância em que a magia impera e que vamos prolongando, aqui e ali, à medida que a idade avança... Não faz falta que apressemos, nas crianças, as "certezas" da idade adulta.
A professora também se espanta e é legitimo que faça perguntas. Mas se as crianças não se espantam, nem vão atrás do espanto da professora, fazendo suas as suas perguntas, ocupemo-nos em deixar fluir a magia, eventualmente numa história, deixando a ciência de lado. Até porque queixamos-nos, tantas vezes, que as nossas crianças não têm imaginação. Cuidemos, então, da atenção que nos merecem os lugares onde ela pode ser encontrada.
Daniel Lousada
Chama-se Carlinhos e é o mais novo de uma família de sete irmãos.
Possui uns olhos brilhantes muito claros e uma franjinha loira mal aparada no meio da testa pequena. Embora magro, tem assim uma barriga redonda, muito grande, que as camisolas herdadas nunca vestem completamente.
Não sei porquê, todos os dias chega atrasado à escola. Encontra-nos sempre já em roda, as últimas novidades contadas, a programação do dia já feita.
Ao vê-lo entrar, mochila às costas, passo miúdo nas calças apertadas, enterneço-me logo e pergunto a mim própria que carrinho de bebé o terá transportado até ali ou de que colo quente ou mãos fofas terá justamente acabado de sair. Mas faço uma cara feia e digo sempre qualquer coisa em tom meio zangado: "Então, Carlinhos, Isto pode continuar assim? O que é que te aconteceu hoje?" Ele põe os olhos em baixo, encolhe os ombros, responde em monossílabos roucos e senta-se com todo o ar de quem não tenta sequer apanhar o fio da meada que a essa hora nos envolve a todos.
Hoje, como de costume, já estava combinado o que iríamos fazer ao longo do dia e o Paulo acabava de contar uma aventura, quando a porta se abriu e, corado, surgiu o Carlinhos. Aproximou-se de nós, lentamente, com uma certa solenidade no andar. Reparei! então que trazia, na mão, um ramo de flores. Eram umas flores roxas, vulgarmente chamadas campainhas, e que fazem lembrar as candeias de azeite que antigamente se suspendiam nas paredes.
Pousou a mala, foi buscar a cadeira e sentou-se junto de nós com o raminho. Não olhava para outra coisa. Estava tão calado, como, apesar de tudo, eu nunca o vira. Para o fazer falar, ao fim de algum tempo, perguntei-lhe: "Que é que trazes aí hoje?". E ele, com um sorriso meio envergonhado, meio misterioso, respondeu: "São candeeiros". Fez uma pausa e depois acrescentou: "Dão luz".
Eu andava há duas semanas sem encontrar motivo para o estudo do Meio Físico e o meu coração sobressaltou-se. Desta vez, achara um belo filão. Imaginei rapidamente uma quantidade de coisas que poderia fazer: levar as crianças a observarem as flores, a abrirem-nas, a verem a seiva que lá por dentro lhes corria, a tirarem conclusões. Esperei, por parte de qualquer criança, uma reacção que me facilitasse o caminho. Como ninguém dissesse nada, avancei eu: "Mas será que dão luz mesmo?»
O Carlinhos ganhou então o ar de quem ficara espantadíssimo com a pergunta e respondeu:
Eu, cheia de esperança, continuei:
— Mas não era o sol a bater nelas?
Olhei as caras dos outros. Nem sinais de riso nem de espanto. Alguns apoiavam até o Carlinhos com um "pois é, ao pé da minha casa também há".
la tentar começar uma explicação qualquer, mas entretanto o Carlinhos já se tinha levantado e, solenemente, como um anjo loiro de cara suja, distribuía uma a uma as flores do seu ramo pelos melhores amigos. Tinha nas mãos, garanto, toda a sabedoria e toda a delicadeza de quem toca nas estrelas. Em volta, havia um silêncio enorme. O silêncio das grandes ocasiões... Olhei-o durante uns minutos. Sentia-me tão atrapalhada, como se alguém de outro planeta me tivesse visitado de súbito.
Depois disse para mim própria: "Devo ser uma professora muito má, mas prefiro deixar cair esta oportunidade". E continuei calada.
De "candeeiro" na mão, cheios de dignidade, o Carlinhos e os amigos lá ficaram naquele reino tão longínquo onde pássaros emigrantes transportam meninos nos bicos ou nas asas e onde as flores, em tufos pelos campos, iluminam os caminhos.
Sem comentários:
Enviar um comentário