A propósito da uma história de Manuela Castro Neves
Não é possível explicar a quem não quer saber de explicações. E só não quer saber de explicações, quem se sente a léguas do assunto da explicação.
Explicar é fazer com que o outro entenda o que temos a dizer. Mas para que isto aconteça precisamos saber o que ele sabe do que queremos que saiba. E só chegamos a esse saber pela conversa. Uma conversa só possível, tantas vezes, se tivermos a capacidade de ler os sinais que ele nos passa: a perplexidade que vemos no seu olhar e nos interroga, que pode ser o início do diálogo que leva à explicação; ou aquele desafio que nos diz que não está nem aí e nos "convida" a seguir outro caminho, algo idêntico ao relatado em “Matemática, só matemática", uma das trinta e quatro pequeníssimas histórias que a Manuela nos conta no seu livro "Caderno A4", e que reproduzimos abaixo [as restantes só podem ser lidas no livro], num enredo que nos convida a reflectir sobre o caminho das explicações que damos: negociação ou confronto.
A Manuela diz que não dá explicações, mas explica! Explica no diálogo que o outro aceita ter com ela. Só não traz a explicação à cabeça.
Daniel Lousada
Esta é uma história que começa mesmo muito mal e acaba bem. Por isso, e porque ela me levou à descoberta de um novo caminho, gosto de a contar.
O Tomás tinha sete anos, frequentava o segundo ano de escolaridade e, de acordo com a professora e com a psicóloga que o observou, precisava de um apoio acrescido fora do horário letivo. Era ótimo aluno a matemática – diziam mesmo que o melhor da turma, – mas havia nele um bloqueio enorme em relação à leitura e à escrita. Foi por isso que a mãe mo trouxe em certo fim de tarde.
Antes que ela tocasse à campainha, já eu ouvia os gritos do menino na rua: “Não! Não! Não!” Não queria vir. Não lhe interessava aprender a ler. Só lhe interessava a matemática. E já à porta, batia desesperadamente com a cabeça nas paredes. Não ia ficar. A mãe, atrapalhadíssima, gritava também. Que ele ficava, sim, que era ela quem mandava. E eu, ali, sem saber como intervir e previamente assustada com o que me esperava. A certa altura, disse à senhora que seria melhor levá-lo para casa, conversar com ele e trazê-lo noutro dia, quando ele estivesse convencido de que o apoio lhe seria útil. Ela respondeu que, se o levasse, lhe iria dar uma tareia, pois estava exausta e furiosa, farta de tanta birra. E que me pedia encarecidamente o grande favor de ficar com o menino durante um bocado, enquanto ela ia dar uma volta para se acalmar. Por favor, por favor. Não tive coragem de recusar, roguei a todos os santos e pedagogos que me ajudassem. E os santos, ouvindo a minha prece, segredaram-me ao ouvido: Matemática, matemática!
Então, com o menino virado para a parede, disse-lhe: “Vá! Vamos trabalhar matemática!”
Limpou as lágrimas, deixou escapar um último soluço, acenou afirmativamente com a cabeça e subiu a escada comigo. Sentámo-nos, pus na sua frente um caderno quadriculado e, sem perder tempo, perguntei-lhe: “Então, da matemática, o que é que vamos fazer agora? ”Resposta imediata: “Contar até dez mil.”
Dez mil? Mas não vais conseguir chegar lá hoje.”
Com o à-vontade de quem percebe do assunto, respondeu: “Pois não, mas não faz mal. Continuamos nos outros dias.”
Pronto. Estava garantido que iria voltar sem birra. Tinha um objetivo nobre: o de chegar a dez mil.
Respirei fundo, enquanto ele começou a grande velocidade: 1, 2, 3, 4, 5... Quando ia perto do 100, sugeri que contasse de 2 em 2.
“Claro! Chego mais depressa.” E continuou, cheio de energia. Já ia em 519 quando a campainha soou. Era a mãe. Acabara a volta calmamente e vinha buscá-lo. Expliquei ao Tomás que, antes de sair, tinha de registar no caderno a frase: “ficámos em 519”. Respondeu que não era preciso. Ele fixava os números muito bem e, da próxima vez, recomeçaria no 520. Insisti. Que esta contagem ia ter muitas etapas e nós íamos gostar de as recordar mais tarde. Por isso, era bom que ficassem registadas, que a frase que eu estava a propor era muito fácil.
“Para mim não!”, afirmou.
Não era?! Então um menino tão inteligente, capaz de contar até dez mil, não conseguia escrever uma coisa tão simples?! Encheu-se de brio: “Fi... é um f e um i ?”
“Sim, claro. E cá?”
“Um c e um a.”
Escreveu “fica” e acrescentou: mos é que eu não sei mesmo.”
“Escreve mo. Eu completo.” Escreveu mu. Eu juntei o s e a palavra em. Todo contente, ele escreveu à frente: 519. Tínhamos assim o primeiro registo: “ficamus em 519”. Depois, foi com um grande sorriso nos lábios que chegou ao pé da mãe. A senhora, aliviada, não cessava de me agradecer.
“É à matemática que deve agradecer, não a mim.”
Grande final de tarde! A guerra não estava provavelmente ganha, mas esta por mim tão temida primeira batalha, sim. Respirei, também eu, aliviada.
Quando o Tomás voltou, três dias depois, ainda a subir as escadas, começou: 520, 522... Fi-lo parar. Primeiro devia ler a frase que tinha escrito no caderno. Refilou um bocado, mas leu. Depois, continuou a contagem. Era ótimo que estivéssemos a entender-nos e eu sentia-me muito alegre com isso. Mas devo confessar que ter na minha frente um menino a olhar para a parede e a contar de seguida era, no mínimo, monocórdico e aborrecido. Lembrei-me então de lhe sugerir uma divisão do tempo: metade para a tão amada contagem, a outra metade para “contas com letras”.
“Contas com letras? Isso existe?”
“Sim, com sinais de – de + e de =. Queres ver?” Escrevi: Bola – b + c =
Achou muita graça, resolveu esta conta e muitas mais. Cola, rola, sola, mola, tola, gola foram, ao fim de algum tempo os resultados das primeiras contas com letras que lhe passei. Outras de maior complexidade haviam de ter lugar em futuros encontros. No final deste, lembrei-o de que tinha de fazer o novo registo da contagem. Preparava-se para copiar a frase do dia anterior, substituindo o 519 pelo número a que chegara, mas eu expliquei-lhe que, se na contagem ele chegava cada vez mais longe, a frase também tinha de o levar um pouco mais longe na aprendizagem. Contrariado e com a minha ajuda, escreveu: “No dia 10/11, ficamos em 987.”
O caminho estava descoberto.
A escrita da frase, progressivamente aumentada, conduzia-o à análise das palavras, à descoberta de alguns sons, à consolidação de outros. Constituía-se, pois, como um bom momento de aprendizagem da leitura. Tornava-se, no entanto, necessário que a linguagem escrita fosse ganhando terreno e assumisse um caráter mais sistemático no nosso tempo de encontro.
E assim aconteceu. A contagem não foi abandonada, mas, com intervalos maiores entre os números (de 5 em 5, de 10 em 10), passou para segundo plano. Assim, só depois das férias de Natal, com grande alegria, chegou à meta dos dez mil. Também foi com grande alegria que chegou ao final do ano letivo a ler com fluência e gosto.
Se eu tivesse feito braço de ferro com o menino e declarasse que a matemática não era para ali chamada, teria esta história acabado bem? Creio que não. É minha convicção que, sem nunca deixar de ter bem presente o objetivo principal, a negociação com as crianças é a via que melhor as predispõe para a aprendizagem.
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* Paráfrase de uma expressão de João dos Santos, que dá título ao livro, "Se não sabe porque é que pergunta? - conversas com João Sousa Monteiro", Lisboa, Assírio & Alvim, 2004