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O que apresento aqui, desenrola-se num cenário (improvável na conjuntura actual), que vê a Educação para a Cidadania como uma área curricular não disciplinar, para o desenvolvimento da qual contribuem conteúdos de diferentes disciplinas*. Num cenário assim, e identificado o preconceito de género como problema a debater, procurei os contributos que cada disciplina pode oferecer e, eleita a disciplina de português, imaginei — na condição de ex-professor, em que me encontro, só posso imaginar — uma prática possível**.
É sabido que a literatura pode ser porta de entrada à exploração dos mais diversos temas. É possível encontrar, algures por aí, o texto que nos serve para início de conversa sobre um tema que elegemos. Por exemplo, com o poema "Não peças", de Lalla Romano (que motivou este texto), é possível abordar o estereótipo de género, que arruma as pessoas em gavetas, e que, em situações limite, pode levar a toda a sorte de preconceitos relacionados com questões de género.
Leio, então, o poema… Releio. E destaco: "não peças (...) paciência a uma mulher que padece de amor". E, acto contínuo, ouço-me a dizer: num tempo em que as questões de género parecem agrupar-se numa ideologia, à volta da qual se erguem trincheiras, não me surpreenderia que alguém quisesse reescrever este verso. E daqui a pergunta: será possível ler este verso como expressão de um estereótipo (de mulher) a recusar? Com certeza — a falta de paciência de quem padece de amor também se aplica ao homem —, desde que tal não autorize afirmar que o poema está contaminado de um qualquer preconceito, de que precisa ser descontaminado — convirá fazer aqui a distinção entre estereótipo e preconceito. E há que salvaguardar o poema de intenções que não são dele —. Até porque (e esta é a sua grande virtude) a poesia não tem agenda; o que não quer dizer que o leitor, na leitura que faz, não possa encontrar a sua — não do poema, bem entendido.Então, fica a pergunta: Será legitimo reescrever este verso sob o pretexto de pôr o poema a salvo de acusações de preconceito? A minha resposta é um NÃO PEREMPTÓRIO. A pretexto de não provocar a ira de "virgens ofendidas", ou de proteger os leitores, sejam ou não crianças, de um vocabulário que as mesmas *virgens" pretendem ofensivo (como sucedeu, entre outros, com a edição inglesa dos livros de Enid Blyton), não vamos retirar de uma obra a verdade da sua época ou o espaço em que foi escrita. Mas podemos propor um trabalho de texto, que provoque a escrita de outros poemas, inspirados no poema de Lalla Romano: — E tu, que poema ou que texto consegues escrever inspirado neste poema?
E, já agora, duas perguntas mais, que também podem servir de tópicos do debate: — Que dizer do poema se escrito por um homem? E a voz de um homem a dar voz ao poema, influencia o sentido que lhe damos?
Daniel Lousada
* Entendo que o exercício da cidadania não tem hora marcada. A «Educação para a Cidadania» não se dá bem numa área disciplinar, que acontece num tempo e num espaço marcado numa agenda. Não foi este, no entanto, o entendimento de quem decide sobre estas coisas, e optou por tratá-la como área disciplinar, organizada num programa com conteúdos a trabalhar, num tempo e num espaço próprio, dinamizado por um professor designado para o efeito (normalmente o director de turma), tendo em conta os temas e respectivos objectivos definidas para esta área.
** O recurso a obras literárias não é exclusivo da disciplina de português, sendo possível imaginar a mesma prática numa aula de filosofia, por exemplo.